O quarto disco do quinteto paulistano
Língua de Trapo mantém afiado o canivete do grupo. Traz 14 temas que, como Jô
Soares afirma na abertura, "não perdoam ninguéééém", além das letras, a maioria
composta pelo ‘crooner de bingo’ Laerte Sarrumor, a execução das canções também se destaca, os arranjos seguem o humor das letras e
vice-versa-ao-contrário.
“Brincando com fogo” abre com “Evridei”,
uma balada em “inglês” como o próprio título indica. Segue romântico na
narrativa de amor nostálgica de “Historinha” e mostra como uma Kombi pode ser
importante na construção de uma família. O amor também faz parte de
“Pederasta”, letra de Ruy Fernando Barboza e interpretação de Laerte tal qual
Maysa para uma história triste de traição homossexual.
Carlos Melo é autor de “Vasectomia” que
podia ser música de campanha publicitária do Ministério da Saúde não fosse
pelas citações de personalidades não poupadas de existência pela vasectomia, de
conhecidos ditadores, personagens de novelas televisivas e famosos nomes da música internacional, incluindo o
próprio Língua de Trapo. Se por um lado a
prevenção a paternidade rende uma boa canção, por outro “Acalanto”, de Ayrton
Mugnaini Jr e Wilson Rocha, rende uma canção-de-ninar sobre agruras da maternidade.
A única regravação é a versão do Língua para “Sampa”,
a homenagem de Caetano Veloso para a capital paulista, nos primeiros minutos
guarda uma versão bastante correta e dá impressão que seguirá assim, até entrar
guitarra distorcida e um Raul Seixas (será ele?) por conta de Laerte Sarrumor para
encerrar a letra, ainda assim não conseguiram destruir a beleza da homenagem
baiana à paulistana.
“Crocodilo” funciona como crítica a ascensão social dos fazendeiros do
Centro-oeste brasileiro, ocorrido nos anos 80, à custa da migração em massa da
população rural em busca de melhores oportunidades nos grandes centros urbanos. Fato que gerou concentração de terras nas mãos de poucos. Paralelamente, a ascensão
da região central também envolveu uma novela de sucesso da TV Manchete, além de
uma infinidade de duplas sertanejas que inundaram as rádios e lojas de discos e
funcionaram como trilha sonora de um governo corrupto no início dos anos 90.
Em “Cagar é bom” João Gilberto incorpora
a interpretação de Laerte Sarrumor para cantar o prazer de botar a “máquina de
churros” para funcionar. “Insatisfaction” apresenta a saga de um músico em
busca de satisfação e construção de personalidade criativa.
“Benzinho” trata de bizarrices sexuais, pois de sacanagem quem entende mesmo
são os ministros da economia. O álbum fecha com a ótima “A insurreição
feminista” um sambão de conteúdo feminista que garante a gargalhada do
ouvinte no refrão. Devia entrar numa coletânea da Marcha das Vadias!
O álbum foi lançado pelo selo paulistano Devil
Discos em LP, e posteriormente em CD, e teve uma
repercussão mediana se comparado com trabalhos anteriores e até mesmo pelo
conteúdo do álbum, sem dúvida um dos melhores discos do Língua de Trapo. O
projeto gráfico é eficiente, contém todas as letras, foto e ficha técnica, além das
eventuais brincadeiras, tais como “CD é Lazer” ou “CD é fogo”, tem a bela capa
com as figuras medonhas dos quadros do menino chorando e do palhaço triste, bastante comuns nas paredes das casas há poucas décadas e hoje, quase, desaparecidos.